Seis semanas de reportagem nas zonas controladas pela UNITA - II



Anteontem falei aqui de um artigo do Eduardo Cintra Torres no blog Malomil, onde o jornalista relata seis semanas de reportagem nas zonas controladas pela UNITA. Ontem saiu a continuação do 1.º artigo, ora a segunda parte. Eu li e recomendo (link),  Aqui  fica excertos que achei no mínimo intrigantes: 

"...vi pela primeira vez um soba com guarda-chuva e cadeira de braços como símbolos de poder. Vi as ribeiras que correm com a água mais transparente que já vi entre paredes de terra que parecem talhadas por pedreiro"

"Acompanhava-nos sempre o secretário de informação da UNITA, hoje deputado na Assembleia Nacional, um dos poucos sobreviventes da liderança de Savimbi. Os outros desertaram ou foram mortos pelo MPLA, como o líder, ou pelo líder. Formado em História, Jaka Jamba recitava poesia portuguesa, lembro-me de “A Lua de Londres”, enquanto palmilhávamos quilómetros debaixo das árvores altíssimas da floresta da Lunda-Sul: Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu,
Traz perdida a cor de prata,
Nas águas não se retrata,
Não beija no campo a flor,
Não traz cortejo de estrelas,
Não fala de amor às belas,
Não fala aos homens de amor."

"Chegou o dia. Estávamos perto do alvo vítima do ataque da UNITA: Alto Chicapa, uma aldeia colonial no meio de nada, abandonada pelo MPLA, abandonada pela população civil das aldeias em redor. O assalto era uma pequena tragédia , com oráculos certos — a guarnição do MPLA sabia do ataque iminente. Assistimos de longe à operação militar, ficámos perto das bazookas. Na localidade, o tiroteio. Senti-me vítima, vítima da necessidade de propaganda da UNITA, o observador imparcial e independente, o repórter de agência que vai informar o que viu....E o que ali vi foi um acto de guerra...Um pequeno acto de guerra, duma guerra civil, duma guerra entre dois blocos, da mesma Guerra de sempre, da primeira guerra que já houve, da última que haverá, a Guerra que mata nas vitórias e nas derrotas, não há vitória de alguém sem a derrota de alguém, não há vitória nem derrota sem mortos e feridos e prisioneiros, sem sangue no terreno e ossos estilhaçados."

"O meu primeiro choque não resultou de ver mortos e prisioneiros, mas de saber que aqueles homens eram vítimas de um ataque encenado para jornalistas a uma guarnição abandonada pelo seu próprio exército."

Três soldados do MPLA aprisionados no Alto Chicapa.
Fotografia de 
Eduardo Cintra Torres no blog Malomil

"Os pintores do Sublime — há uma sala de horrores sublimes na Tate Gallery — recriavam nos seus ateliers, anos, séculos ou milénios depois, os episódios míticos ou reais, com tintas e pincéis, mas o fotógrafo está lá, no meio do horror e regista-o sem recriar, apenas escolhendo o ponto de vista. O meu foi o de um jovem jornalista atarantado, tentando pensar enquanto se via no meio de um acto de guerra agendado para as reportagens. Senti enjoo, repugnância, enquanto olhava pelo visor, enquadrava e disparava as balas fotográficas. O mensageiro, a testemunha, também sofre com a guerra. O stress pós-traumático não é exclusivo do soldado."

(Continuação)

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